essa foto retrata a analise da conjuntura eclesial de 2023 feita nas diversas esferas da igreja

Analisar alguma situação é um exercício que exige além de opiniões, informações fundamentadas e capacidade de articular os pontos refletidos a partir de alguma inspiração e propósito, isto é, a partir de determinado  ponto de partida. Esta prática aqui compartilhada, é tão somente uma partilha bem simples sobre alguns pontos de nossa eclesialidade, carente de maiores aprofundamentos, a partir da inspiração de duas premissas presentes no ministério petrino do papa Francisco: sinodalidade e missionariedade. Traço alguns esboços de reflexão levando em conta três pequenas faces eclesiais: a instituição; o povo; as relações povo-mundo-reino.

1. A instituição

A instituição eclesial é obra divina e humana. Deus chama, reúne os povos em uma família de povos sob o impulso do Espírito Santo em busca de viver e construir o sonho inaugurado por Jesus, o Reino de Deus Pai. O Reino já está entre nós como germe. Está “já” e “ainda não”. A Igreja seguindo essa mesma inspiração está presente no mundo em constante renovação. Sua dinâmica segue é desenvolvida em parceria, em comunhão. A hierarquia, preparada e disponível integralmente ao serviço missionário e os demais membros unem esforços e dão visibilidade real e histórica à unidade e comunhão da Igreja Povo de Deus. Ela é organizada e construída em sinodalidade e sua razão de ser para além de si mesmo se explica na missionariedade. A primeira está mais ligada à sua organização interna, a segunda mais relacionada à sua expressão externa.

1.1. Magistério e Tradição

A Igreja enquanto instituição, conforme nos ensina a Tradição e o Magistério, é perfeita, sem rugas e sem manchas, resplendente de beleza. Ela é expressão da comunhão trinitária e ao mesmo tempo é sinal e instrumento de sua construção no mundo. Chamada, reunida e enviada por Deus ao meio do mundo onde está inserida, a instituição divina encontra-se livre das mazelas e maldade humana. O mal do mundo não a contamina, ainda que lhe toque, não causa risco de destruição. Contudo, pode influenciá-la de maneira negativa – no sentido de conformá-la as suas estruturas – ou positivamente, por reconhecer o mundo como espaço de transformação à luz dos valores do Reino.

1.2. Teologia

A face espiritual da instituição eclesial está pronta. Por um lado nos sentimos abençoados por sermos admitidos como membros, células vivas desse edifício vivo. Por outro lado nos sentimos desafiados pelas inquietações que o Espírito suscita no coração e na vida de nossos pastores e lideranças eclesiais. As ciências em geral nos oferecem pistas para lermos e interpretarmos os sinais dos tempos percebendo neles a presença e ausência do amor de Deus. As correntes de pensamentos são múltiplas e as reflexões sobre a fé, a pastoral, a evangelização seguem a mesma diversidade. Embora existam as correntes teológicas, os pontos de partida se afunilam e reduzem-se, ao menos neste texto em três: as que se empenham em manter-se fiéis ao seu fundamento; as que investem energia nas tendências pentecostais; as mais voltadas para realidade da vida das pessoas.

Em outras palavras, as reflexões mais voltadas à manutenção da estrutura e das tradições, com forte tendência ao radicalismo e aceitando todas as coisas como elas se encontram. Outras envolvidas em práticas espirituais exteriormente tão intensas que expressam de fato, um espiritualismo sem raízes no chão da vida. E outras que buscam respeitar a realidade da vida tomando como ponto de partida, as situações vividas por nossa gente – igreja sacramental de devoção e desobriga; igreja pentecostal; igreja de missão.

1.3. História

Nossa história eclesial amazônida registra ao longo de sua construção os passos históricos vivenciados e os traços superados ao longo dos tempos. Os primeiros tempos foram fortemente marcados pela pastoral das desobrigas voltadas para a preparação dos sacramentos. No entanto ao mesmo em que se preparava para os sacramentos, também se investia na luta pelos direitos sociais e humanos. Escola, saúde, transporte, energia elétrica, formação de líderes populares foram os frutos de uma época em que as Comunidades Eclesiais de Base tiveram seu tempo áureo em toda a Amazônia e a Teologia da Libertação fomentava o sonho do Reino de Deus entre nós.

A partir dos anos 80 o investimento estrangeiro contra as lideranças populares, focaram na fonte de sua formação, as CEBs. O processo de desmantelamento dessas comunidades trouxe como resultado a presença cada vez mais acentuada de práticas externas de religiosidade e devoções desligadas da realidade da vida, longe das lutas pelos direitos e pela formação de lideranças esclarecidas quanto a seus direitos e deveres sociais. A atenção voltada para as questões espirituais, a moral cristã, o esforço em fugir do pecado, retirou de cena a atenção quanto ao que fazer para ajudar o faminto, o preso, o doente, o migrante, o sedento, o desamparado e, a casa comum. O envolvimento nas “coisas de Deus” é tão intenso que mal sobra tempo para pensar “as coisas do mundo”. A consequência, é que outras pensam, afinal, quem não pensa é pensado.

A Igreja instituição, especialmente na Amazônia guarda consigo ao menos esses elementos, sendo enriquecidos pela linha missionária que alimenta sua vitalidade desde sempre, especialmente a partir de 1972 em Santarém. Mas esse marco também pode ser mal assumido- há quem olhe a profundidade do Documento e se alegre com suas linhas, há quem tenha dificuldade em aceitá-lo e há quem põe a mão na massa em vista de efetivá-lo, estes embora sejam poucos, tem sua relevância.

2. O povo

A Igreja é muito mais que a instituição. Ela é dinamizada pelo Espírito que une pessoas, gera comunhão entre povos, e com todos esses torna-se o Povo do Senhor, o Novo Povo de Deus. Relembrando a poesia, “a vida é maior que o livro”, “a vida é muito maior” e muito pior. Nesse nível aparecem os limites e desafios que confirmam sua validade e seus riscos. Enquanto a ‘perfeição’ marca sua estrutura espiritual e institucional, o mesmo não acontece no meio do povo. Aqui muitos elementos são postos em questão, ora fortalecendo sua identidade e pertença, ora pondo-a em xeque.

Nas afirmações do Papa Francisco, não se pode conceber a outra pessoa apenas como destinatário da mensagem, nem tampouco como objeto da missão. A outra pessoa é interlocutora e como tal tem o direito de ser ouvida e de ouvir o anúncio do evangelho. Mas permanece em muitos líderes a mentalidade de que do outro lado há apenas ouvintes, receptadores da mensagem. Uma Igreja assim, não consegue envolver mais pessoas, cansa quem está na ativa e pouco a pouco perde sua vitalidade e importância.

As pessoas, na Igreja da Amazônia especialmente, são interlocutoras. Podem e devem agir, dizer e se organizar para levar avante a missão. Entre tantas situações, destacamos dois pontos que levantam reflexões sobre a vida e o dinamismo de nossa Igreja amazônida: a questão da indentidade/identificação e as mentalidades e projetos com suas consequências.

2.1. Identidade essencial e as identificações externas do povo

“Igreja é povo que se organiza, gente oprimida buscando a libertação, em Jesus Cristo, a ressurreição”. Assim cantava o povo reunido nas CEBs, as pequenas comunidades eclesiais de base que renovaram o modo de ser Igreja na América Latina e inspiraram mudanças na Igreja pelo mundo afora. Essencialmente a Igreja é povo. Mas, não é povo qualquer. Não se trata de uma categoria sociológica. É uma realidade teológica. Tão importante que foi retomada com todas as forças no Concílio Vaticano II. A Igreja é Povo de Deus, reunida na força do Espírito Santo.  

A pertença essencial a Deus exige sua construção existencial a fim de efetivá-la na história. Aqui acontecem os abalos. São vários grupos com o intento de suprimir a força histórica desse povo resistente também no nível sociológico. Antes de desbaratar o forte empenho social e humanitário que marca a caminhada das CEBs, foi preciso infiltrar mentalidades danosas à sua verdadeira identidade. E muitas pessoas aderiram a esses grupos, identificando-se com eles.

Uma das primeiras falsas identificações a atingir o povo de Deus na Amazônia foi o protestantismo norte americano em suas diversas etapas e feições, desde a fase do protestantismo tradicional até o de cunho autônomo dos dias atuais. As ameaças e temores pelo fim do mundo, as promessas de milagres, bênçãos e cura repentina, assomado ao culto mais envolvente emocional e fisicamente, levou muitas lideranças às outras igrejas. Muitas comunidades católicas deixaram de existir, sendo que várias mudaram de denominação – trocaram o nome do santo por uma sigla, deixaram de fazer promessas e passaram a fazer votos, tiraram a imagem do santo e puseram a foto do pastor fundador.

Assim constatamos o avanço gradativo e continuado do protestantismo em toda a Amazônia com maior incidência (percentual) nas áreas rurais onde a escassa presença ministerial ordenada e/ou leiga deixou espaço para os missionários protestantes com sua bíblia embaixo do braço, e o entusiasmo do pregador arrastou muitos líderes e muitos liderados. 

Um dos efeitos dessa identificação foi a assimilação católica do pentecostalismo ou neopentecostalismo com tudo que essa ‘corrente eclesial’ favorece, desde uma excessiva preocupação espiritual e doutrinal até um moralismo empobrecido que não favorece a tomada de consciência dos pecados e males sociais e ecológicos. Quase sempre limita o olhar ao campo da moral sexual e assuntos afins (infidelidade conjugal, pornografia, aborto…).

Outra falsa identificação se deu no campo político. As opções partidárias tornaram-se bem maior que as escolhas eleitorais para o dia da votação. Os currais eleitorais mantêm as pessoas ligadas, senão por toda a vida, por quatro anos, a alguns partidos políticos ou eternos candidatos para garantir votos na próxima eleição. A dependência social gerada fomenta divisões e alimenta a tendência da espera passiva por doações pessoais ou coletivas interesseiras mediante projetos governamentais e partidários. De fato, são muitos projetos que desde longos anos se impõem contra nossa região como os exportadores de madeira, os criadores de gado, os produtores de soja, garimpeiros, ‘negociadores de carbono’, traficantes (narcos, de pessoas, de espécie…) etc. Dentre esses projetos há a anuência de agentes da política partidária e/ou governamental.

Com tristeza registramos a associação de gente do povo, sobretudo da juventude aos grupos do crime organizado. Inicia como usuário ou cumpridor de pequenos mandados. O sabor da aventura, o desejo do proibido, o dinheiro ganho sem muito esforço, além de outros fatores, leva nossos jovens a este mundo de morte. Nas comunidades rurais, a vontade de combater o tráfico envolve nossa juventude nos graus terríveis da criminalidade. Aprendem as técnicas de combate aos transportadores das drogas, com requinte de crueldade os exterminam para roubar-lhe a carga e assumem o posto de ‘piratas dos rios’.

Além das ‘falsas identificações’, e dos grandes projetos de desenvolvimento, outra fonte de risco para nossa igreja amazônida está nas mentalidades anti-reino. Mesmo sem a pretensão de ser exaustivo, destaco algumas muito presente nos dias atuais: o clericalismo; os extremismos (político e religioso); as fake news; o empobrecimento do humanismo;

A compreensão errônea do poder e seu mau uso, deturpa a liderança e as relações. O líder é transformado em chefe, o diálogo torna-se imposição, as orientações coletivas são reduzidas ao querer do superior. Esse comportamento deturpado recebe vários nomes. Entre nós sua maior expressão é chamada de clericalismo. A ordem, a força, as determinações do clero ou do clérigo, ou ainda de determinado líder comunitário, tem toda a primazia. Não mais a comunidade, não mais o planejamento coletivo, mas simplesmente as ideias e determinações do ‘chefe’.

Essa mentalidade foi assimilada por nossas lideranças. Muitos leigos, religiosos se revestem desse tipo de postura. Defendem com todas as forças o desejo do clérigo ou assumem o posto de comando, impondo suas determinações sobre os demais. Num ambiente assim a tendência é desestabilizar a estrutura sinodal sob a qual se construiu nosso dinamismo eclesial. E tristemente percebemos Igreja Locais onde esse risco se torna evidente por parte de suas lideranças.

As mentalidades danosas tendem a aumentar os riscos quando alcançam os extremos. Essa situação não nos deixa isentos. O extremismo, aparentemente de cunho político, atingiu também a esfera religiosa. Revestidos de conservadores, defensores da tradição, da moral e dos bons costumes, ofuscam o caráter de comunhão, da unidade e da fraternidade. Colocam-se como donos da verdade, defendem apenas uma forma de viver e entender a fé. Se no campo político matam os corpos, no espaço pastoral usam do próprio desconhecimento histórico-doutrinal para disseminar opiniões falaciosas e infundadas até mesmo contra o papa e contra quem segue as intuições da teologia da libertação acusando-a de comunismo disfarça de religião.

Grande força disseminadora da ignorância e da falácia, está nas chamadas fake News.  Há uma estrondosa indústria produzindo essas informações falsas ou deturpando as informações verdadeiras. Dentre as consequências fomenta-se o ódio contra pessoas, ideias e projetos. A polarização é fruto e produtora das fake. Quem se coloca ao lado de um grupo é levado a crer na ideia de eliminar o concorrente como o ato mais acertado a ser realizado. O lucro é garantido conforme os cliks nos links compartilhados por pessoas desinformadas à cerca da verdade sobre essas informações.

Todas essas situações tem gerado em nosso povo a triste realidade do ‘desumanismo’, ou desumanização, ou do empobrecimento humano de nosso povo. Falta-lhes iniciativa para a produção agrícola, para a organização e reivindicações de seus direitos. Lentamente o povo, especialmente os mais desprovidos de recursos financeiros, perdem também seus valores humanitários como a honestidade, a compaixão, a criatividade, a ternura. Nesse sentido a pobreza social fica ainda mais aguçada com a pobreza humana a assolar nossa gente.

As relações povo-mundo-reino.

O povo de Deus na Amazônia segue seu caminho entre construções e reconstruções. Igreja viva e cheia de motivos para nunca sentir-se completa, concluída ou completa. Tais desafios exigem e motivam a criatividade para enfrentar e superar adversidades naturais, culturais, financeiras e sociais. As longas distâncias e demorado tempo para vencê-las pelas estradas hidrográficas; os frutos da miscigenação dos vários povos que nos formam, fomentando a necessidade do acolhimento ao diferente; os recursos financeiros quase sempre são escassos, mas temos outras riquezas concedidas pela mãe e casa comum, pela prática das devoções e pelo desejo sincero de participação na obra evangelizadora.

Essa Igreja aqui constituída, não pode se dar ao luxo de querer se equiparar com as Igrejas de outras partes do mundo. Nossa relação com o mundo a nos cercar nos configura como agentes do Reino de Deus do nosso jeito amazônida (devoto, alegre, espontâneo, criativo). A formação de liderança deve levar em conta nossa riqueza de costumes, valorizar nossa linguagem, nosso comida e nossas relações (compadre, colegas, conhecidos, vizinhos, parentes, amigos…). Os padres, bispos, religiosos, ministros leigos, não poderão realizar sua parte na missão se não respeitarem e encontrarem o jeito certo de inserir outras mais pessoas na atuação pastoral e ajudá-las a vencer as mentalidades maliciosas e para seu crescimento humano e espiritual.

Se nos falta profecia como soa em alguns espaços, a comunidade, a Igreja deve assumir a parte que lhes cabe numa profecia coletiva onde todos fazem ecoar a vontade da vida plena que Deus tem para todos nós.

O assunto é muito maior do que se possa imaginar e dizer em tão pouco espaço, mas intentou apontar alguns elementos que marcam nossa vida eclesial na Amazônia reafirmando: somos fortes, somos naturalmente missionários e formados numa dinâmica sinodal, nossa maior riqueza é o amor de Deus, nosso maior patrimônio é a fé que temos no Senhor.  

Por fim, deixo um questionamento: como dialogar com essa realidade sócio eclesial em vista de uma Igreja efetivamente sinodal e missionária?

 

Autoria do texto: Pe. Gordiano. Anori, 23/10/23