Analisar alguma
situação é um exercício que exige além de opiniões, informações fundamentadas e
capacidade de articular os pontos refletidos a partir de alguma inspiração e
propósito, isto é, a partir de determinado ponto de partida. Esta prática
aqui compartilhada, é tão somente uma partilha bem simples sobre alguns pontos
de nossa eclesialidade, carente de maiores aprofundamentos, a partir da
inspiração de duas premissas presentes no ministério petrino do papa Francisco:
sinodalidade e missionariedade. Traço alguns esboços de reflexão levando em
conta três pequenas faces eclesiais: a instituição; o povo; as relações
povo-mundo-reino.
1.
A instituição
A instituição
eclesial é obra divina e humana. Deus chama, reúne os povos em uma família de
povos sob o impulso do Espírito Santo em busca de viver e construir o sonho
inaugurado por Jesus, o Reino de Deus Pai. O Reino já está entre nós como
germe. Está “já” e “ainda não”. A Igreja seguindo essa mesma inspiração está
presente no mundo em constante renovação. Sua dinâmica segue é desenvolvida em
parceria, em comunhão. A hierarquia, preparada e disponível integralmente ao
serviço missionário e os demais membros unem esforços e dão visibilidade real e
histórica à unidade e comunhão da Igreja Povo de Deus. Ela é organizada e
construída em sinodalidade e sua razão de ser para além de si mesmo se explica
na missionariedade. A primeira está mais ligada à sua organização interna, a
segunda mais relacionada à sua expressão externa.
1.1.
Magistério e Tradição
A Igreja enquanto
instituição, conforme nos ensina a Tradição e o Magistério, é perfeita, sem rugas
e sem manchas, resplendente de beleza. Ela é expressão da comunhão trinitária e
ao mesmo tempo é sinal e instrumento de sua construção no mundo. Chamada,
reunida e enviada por Deus ao meio do mundo onde está inserida, a instituição
divina encontra-se livre das mazelas e maldade humana. O mal do mundo não a
contamina, ainda que lhe toque, não causa risco de destruição. Contudo, pode
influenciá-la de maneira negativa – no sentido de conformá-la as suas
estruturas – ou positivamente, por reconhecer o mundo como espaço de
transformação à luz dos valores do Reino.
1.2. Teologia
A face espiritual da
instituição eclesial está pronta. Por um lado nos sentimos abençoados por
sermos admitidos como membros, células vivas desse edifício vivo. Por outro
lado nos sentimos desafiados pelas inquietações que o Espírito suscita no
coração e na vida de nossos pastores e lideranças eclesiais. As ciências em
geral nos oferecem pistas para lermos e interpretarmos os sinais dos tempos
percebendo neles a presença e ausência do amor de Deus. As correntes de
pensamentos são múltiplas e as reflexões sobre a fé, a pastoral, a
evangelização seguem a mesma diversidade. Embora existam as correntes
teológicas, os pontos de partida se afunilam e reduzem-se, ao menos neste texto
em três: as que se empenham em manter-se fiéis ao seu fundamento; as que
investem energia nas tendências pentecostais; as mais voltadas para realidade
da vida das pessoas.
Em outras palavras,
as reflexões mais voltadas à manutenção da estrutura e das tradições, com forte
tendência ao radicalismo e aceitando todas as coisas como elas se encontram.
Outras envolvidas em práticas espirituais exteriormente tão intensas que
expressam de fato, um espiritualismo sem raízes no chão da vida. E outras que
buscam respeitar a realidade da vida tomando como ponto de partida, as
situações vividas por nossa gente – igreja sacramental de devoção e desobriga;
igreja pentecostal; igreja de missão.
1.3.
História
Nossa história
eclesial amazônida registra ao longo de sua construção os passos históricos
vivenciados e os traços superados ao longo dos tempos. Os primeiros tempos
foram fortemente marcados pela pastoral das desobrigas voltadas para a
preparação dos sacramentos. No entanto ao mesmo em que se preparava para os
sacramentos, também se investia na luta pelos direitos sociais e humanos.
Escola, saúde, transporte, energia elétrica, formação de líderes populares
foram os frutos de uma época em que as Comunidades Eclesiais de Base tiveram
seu tempo áureo em toda a Amazônia e a Teologia da Libertação fomentava o sonho
do Reino de Deus entre nós.
A partir dos anos 80
o investimento estrangeiro contra as lideranças populares, focaram na fonte de
sua formação, as CEBs. O processo de desmantelamento dessas comunidades trouxe
como resultado a presença cada vez mais acentuada de práticas externas de
religiosidade e devoções desligadas da realidade da vida, longe das lutas pelos
direitos e pela formação de lideranças esclarecidas quanto a seus direitos e
deveres sociais. A atenção voltada para as questões espirituais, a moral
cristã, o esforço em fugir do pecado, retirou de cena a atenção quanto ao que
fazer para ajudar o faminto, o preso, o doente, o migrante, o sedento, o
desamparado e, a casa comum. O envolvimento nas “coisas de Deus” é tão intenso
que mal sobra tempo para pensar “as coisas do mundo”. A consequência, é que
outras pensam, afinal, quem não pensa é pensado.
A Igreja instituição,
especialmente na Amazônia guarda consigo ao menos esses elementos, sendo
enriquecidos pela linha missionária que alimenta sua vitalidade desde sempre,
especialmente a partir de 1972 em Santarém. Mas esse marco também pode ser mal
assumido- há quem olhe a profundidade do Documento e se alegre com suas linhas,
há quem tenha dificuldade em aceitá-lo e há quem põe a mão na massa em vista de
efetivá-lo, estes embora sejam poucos, tem sua relevância.
2.
O povo
A Igreja é muito mais
que a instituição. Ela é dinamizada pelo Espírito que une pessoas, gera
comunhão entre povos, e com todos esses torna-se o Povo do Senhor, o Novo Povo
de Deus. Relembrando a poesia, “a vida é maior que o livro”, “a vida é muito
maior” e muito pior. Nesse nível aparecem os limites e desafios que confirmam
sua validade e seus riscos. Enquanto a ‘perfeição’ marca sua estrutura
espiritual e institucional, o mesmo não acontece no meio do povo. Aqui muitos
elementos são postos em questão, ora fortalecendo sua identidade e pertença,
ora pondo-a em xeque.
Nas afirmações do
Papa Francisco, não se pode conceber a outra pessoa apenas como destinatário da
mensagem, nem tampouco como objeto da missão. A outra pessoa é interlocutora e
como tal tem o direito de ser ouvida e de ouvir o anúncio do evangelho. Mas
permanece em muitos líderes a mentalidade de que do outro lado há apenas
ouvintes, receptadores da mensagem. Uma Igreja assim, não consegue envolver
mais pessoas, cansa quem está na ativa e pouco a pouco perde sua vitalidade e
importância.
As pessoas, na Igreja
da Amazônia especialmente, são interlocutoras. Podem e devem agir, dizer e se
organizar para levar avante a missão. Entre tantas situações, destacamos dois
pontos que levantam reflexões sobre a vida e o dinamismo de nossa Igreja
amazônida: a questão da indentidade/identificação e as mentalidades e projetos
com suas consequências.
2.1. Identidade
essencial e as identificações externas do povo
“Igreja é povo que se
organiza, gente oprimida buscando a libertação, em Jesus Cristo, a
ressurreição”. Assim cantava o povo reunido nas CEBs, as pequenas comunidades
eclesiais de base que renovaram o modo de ser Igreja na América Latina e
inspiraram mudanças na Igreja pelo mundo afora. Essencialmente a Igreja é povo.
Mas, não é povo qualquer. Não se trata de uma categoria sociológica. É uma
realidade teológica. Tão importante que foi retomada com todas as forças no
Concílio Vaticano II. A Igreja é Povo de Deus, reunida na força do Espírito
Santo.
A pertença essencial
a Deus exige sua construção existencial a fim de efetivá-la na história. Aqui
acontecem os abalos. São vários grupos com o intento de suprimir a força
histórica desse povo resistente também no nível sociológico. Antes de
desbaratar o forte empenho social e humanitário que marca a caminhada das CEBs,
foi preciso infiltrar mentalidades danosas à sua verdadeira identidade. E
muitas pessoas aderiram a esses grupos, identificando-se com eles.
Uma das primeiras
falsas identificações a atingir o povo de Deus na Amazônia foi o protestantismo
norte americano em suas diversas etapas e feições, desde a fase do
protestantismo tradicional até o de cunho autônomo dos dias atuais. As ameaças
e temores pelo fim do mundo, as promessas de milagres, bênçãos e cura
repentina, assomado ao culto mais envolvente emocional e fisicamente, levou
muitas lideranças às outras igrejas. Muitas comunidades católicas deixaram de existir,
sendo que várias mudaram de denominação – trocaram o nome do santo por uma
sigla, deixaram de fazer promessas e passaram a fazer votos, tiraram a imagem
do santo e puseram a foto do pastor fundador.
Assim constatamos o
avanço gradativo e continuado do protestantismo em toda a Amazônia com maior
incidência (percentual) nas áreas rurais onde a escassa presença ministerial
ordenada e/ou leiga deixou espaço para os missionários protestantes com sua
bíblia embaixo do braço, e o entusiasmo do pregador arrastou muitos líderes e
muitos liderados.
Um dos efeitos dessa
identificação foi a assimilação católica do pentecostalismo ou
neopentecostalismo com tudo que essa ‘corrente eclesial’ favorece, desde uma
excessiva preocupação espiritual e doutrinal até um moralismo empobrecido que
não favorece a tomada de consciência dos pecados e males sociais e ecológicos.
Quase sempre limita o olhar ao campo da moral sexual e assuntos afins
(infidelidade conjugal, pornografia, aborto…).
Outra falsa
identificação se deu no campo político. As opções partidárias tornaram-se bem
maior que as escolhas eleitorais para o dia da votação. Os currais eleitorais
mantêm as pessoas ligadas, senão por toda a vida, por quatro anos, a alguns
partidos políticos ou eternos candidatos para garantir votos na próxima
eleição. A dependência social gerada fomenta divisões e alimenta a tendência da
espera passiva por doações pessoais ou coletivas interesseiras mediante
projetos governamentais e partidários. De fato, são muitos projetos que desde
longos anos se impõem contra nossa região como os exportadores de madeira, os
criadores de gado, os produtores de soja, garimpeiros, ‘negociadores de
carbono’, traficantes (narcos, de pessoas, de espécie…) etc. Dentre esses
projetos há a anuência de agentes da política partidária e/ou governamental.
Com tristeza
registramos a associação de gente do povo, sobretudo da juventude aos grupos do
crime organizado. Inicia como usuário ou cumpridor de pequenos mandados. O
sabor da aventura, o desejo do proibido, o dinheiro ganho sem muito esforço,
além de outros fatores, leva nossos jovens a este mundo de morte. Nas
comunidades rurais, a vontade de combater o tráfico envolve nossa juventude nos
graus terríveis da criminalidade. Aprendem as técnicas de combate aos
transportadores das drogas, com requinte de crueldade os exterminam para
roubar-lhe a carga e assumem o posto de ‘piratas dos rios’.
Além das ‘falsas
identificações’, e dos grandes projetos de desenvolvimento, outra fonte de
risco para nossa igreja amazônida está nas mentalidades anti-reino. Mesmo sem a
pretensão de ser exaustivo, destaco algumas muito presente nos dias atuais: o
clericalismo; os extremismos (político e religioso); as fake news; o
empobrecimento do humanismo;
A compreensão errônea
do poder e seu mau uso, deturpa a liderança e as relações. O líder é
transformado em chefe, o diálogo torna-se imposição, as orientações coletivas
são reduzidas ao querer do superior. Esse comportamento deturpado recebe vários
nomes. Entre nós sua maior expressão é chamada de clericalismo. A ordem, a
força, as determinações do clero ou do clérigo, ou ainda de determinado líder
comunitário, tem toda a primazia. Não mais a comunidade, não mais o
planejamento coletivo, mas simplesmente as ideias e determinações do ‘chefe’.
Essa mentalidade foi
assimilada por nossas lideranças. Muitos leigos, religiosos se revestem desse
tipo de postura. Defendem com todas as forças o desejo do clérigo ou assumem o
posto de comando, impondo suas determinações sobre os demais. Num ambiente
assim a tendência é desestabilizar a estrutura sinodal sob a qual se construiu
nosso dinamismo eclesial. E tristemente percebemos Igreja Locais onde esse
risco se torna evidente por parte de suas lideranças.
As mentalidades
danosas tendem a aumentar os riscos quando alcançam os extremos. Essa situação
não nos deixa isentos. O extremismo, aparentemente de cunho político, atingiu
também a esfera religiosa. Revestidos de conservadores, defensores da tradição,
da moral e dos bons costumes, ofuscam o caráter de comunhão, da unidade e da
fraternidade. Colocam-se como donos da verdade, defendem apenas uma forma de
viver e entender a fé. Se no campo político matam os corpos, no espaço pastoral
usam do próprio desconhecimento histórico-doutrinal para disseminar opiniões
falaciosas e infundadas até mesmo contra o papa e contra quem segue as
intuições da teologia da libertação acusando-a de comunismo disfarça de
religião.
Grande força
disseminadora da ignorância e da falácia, está nas chamadas fake News. Há
uma estrondosa indústria produzindo essas informações falsas ou deturpando as
informações verdadeiras. Dentre as consequências fomenta-se o ódio contra
pessoas, ideias e projetos. A polarização é fruto e produtora das fake. Quem se
coloca ao lado de um grupo é levado a crer na ideia de eliminar o concorrente
como o ato mais acertado a ser realizado. O lucro é garantido conforme os cliks
nos links compartilhados por pessoas desinformadas à cerca da verdade sobre
essas informações.
Todas essas situações
tem gerado em nosso povo a triste realidade do ‘desumanismo’, ou desumanização,
ou do empobrecimento humano de nosso povo. Falta-lhes iniciativa para a
produção agrícola, para a organização e reivindicações de seus direitos.
Lentamente o povo, especialmente os mais desprovidos de recursos financeiros,
perdem também seus valores humanitários como a honestidade, a compaixão, a
criatividade, a ternura. Nesse sentido a pobreza social fica ainda mais aguçada
com a pobreza humana a assolar nossa gente.
As
relações povo-mundo-reino.
O povo de Deus na
Amazônia segue seu caminho entre construções e reconstruções. Igreja viva e
cheia de motivos para nunca sentir-se completa, concluída ou completa. Tais
desafios exigem e motivam a criatividade para enfrentar e superar adversidades
naturais, culturais, financeiras e sociais. As longas distâncias e demorado
tempo para vencê-las pelas estradas hidrográficas; os frutos da miscigenação
dos vários povos que nos formam, fomentando a necessidade do acolhimento ao
diferente; os recursos financeiros quase sempre são escassos, mas temos outras
riquezas concedidas pela mãe e casa comum, pela prática das devoções e pelo
desejo sincero de participação na obra evangelizadora.
Essa Igreja aqui
constituída, não pode se dar ao luxo de querer se equiparar com as Igrejas de
outras partes do mundo. Nossa relação com o mundo a nos cercar nos configura
como agentes do Reino de Deus do nosso jeito amazônida (devoto, alegre,
espontâneo, criativo). A formação de liderança deve levar em conta nossa
riqueza de costumes, valorizar nossa linguagem, nosso comida e nossas relações
(compadre, colegas, conhecidos, vizinhos, parentes, amigos…). Os padres,
bispos, religiosos, ministros leigos, não poderão realizar sua parte na missão
se não respeitarem e encontrarem o jeito certo de inserir outras mais pessoas
na atuação pastoral e ajudá-las a vencer as mentalidades maliciosas e para seu
crescimento humano e espiritual.
Se nos falta profecia
como soa em alguns espaços, a comunidade, a Igreja deve assumir a parte que
lhes cabe numa profecia coletiva onde todos fazem ecoar a vontade da vida plena
que Deus tem para todos nós.
O assunto é muito
maior do que se possa imaginar e dizer em tão pouco espaço, mas intentou
apontar alguns elementos que marcam nossa vida eclesial na Amazônia reafirmando:
somos fortes, somos naturalmente missionários e formados numa dinâmica sinodal,
nossa maior riqueza é o amor de Deus, nosso maior patrimônio é a fé que temos
no Senhor.
Por fim, deixo um
questionamento: como dialogar com essa realidade sócio eclesial em vista de uma
Igreja efetivamente sinodal e missionária?
Autoria do texto: Pe. Gordiano. Anori, 23/10/23
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